sábado, 20 de dezembro de 2014

POR DENTRO DE UMA OBRA: Tochas de Nero

HENRYK SIEMIRADZKI - Tochas de Nero - Óleo sobre tela - 94 x 174,5 - 1882

Uma das obras mais famosas de Henryk Siemiradzki é também uma de suas obras mais dramáticas. Tochas de Nero é uma obra que fala sobre crueldade e de como o poder sem limites pode ser algo bastante prejudicial. Quer não nos deixar esquecer dos tempos cruéis pelos quais passaram os primeiros cristãos, num período de decadência do Império Romano. Siemiradzki inspirou-se em um texto escrito por Tácito, antigo morador de Roma, que acabou por se tornar uma espécie de repórter de seu tempo.
Por volta de 64d.C., durante o verão, um grande incêndio devastou um terço da cidade de Roma. Durante cerca de nove dias, os quarteirões mais movimentados e residenciais da cidade foram praticamente destruídos. Pelas narrativas de Tácito, Nero foi o causador da tragédia, pois tinha como planos construir o famoso Domus Aurea, a nova morada oficial do imperador, e para isso precisava desalojar uma área que era estratégica para os seus projetos. Apesar de que Suetônio, outro historiador da época, defendeu outra hipótese. Para desviar o público da grave suspeita que pesou sobre ele, Nero encontrou nos cristãos que habitavam a cidade, uma espécie de bodes expiatórios para colocar a culpa. Ele foi implacável e extremamente cruel, para que sua alegação parecesse ter créditos. Depois de prender muitos deles, torturava e aplicava as mais truculentas condenações, como por exemplo, vestir muitos cristãos com peles de animais e soltá-los em um cercado para serem atacados e sacrificados por dezenas de cães. Mas, uma das penas mais duras foi transformar os cristãos, ainda vivos, em tochas humanas, para que iluminassem a cidade com o mesmo fogo pelo quais teriam provocado e eram injustamente condenados. Esse limite da arrogância e autoritarismo talvez tenha sido um dos trechos mais tristes da história da cidade.



Henryk Siemiradzki ficou profundamente solidário com o sofrimento de todos aqueles cristãos e compor uma tela que narrasse todo o sofrimento daquele povo tornou-se para ele uma questão de honra. Passou um longo período pesquisando a fundo todos os detalhes sociais, políticos e religiosos da cena e produziu um dos trabalhos mais intensos de sua carreira. A cena mostra o exato momento em que o imperador aparece nos jardins de sua residência, para dar início à grande noite de carnificina que desenrolaria à partir dali. O céu ainda não se encontrava absolutamente escuro quando uma grande multidão já aguardava para o evento. Vestidas com roupas de festa e coroadas com flores, as pessoas marchavam, todas bêbadas, cantando alegremente na expectativa do grande espetáculo de horror que estava prestes a acontecer. Por diversas avenidas da cidade, postes foram fincados próximos uns aos outros e em cada um deles, um cristão foi amarrado e envolto com uma espécie de estopa. Ao lado de cada poste, havia escravos prontos para começar o sacrifício. Assim que a noite caiu sobre a cidade, uma trombeta deu o sinal e tudo começou. Um a um, os postes foram sendo acesos e rapidamente a cidade se viu iluminada pelos corpos de centenas de cristãos, todos ainda vivos. Nero montou em uma carruagem puxada por quatro garanhões brancos e seguiu pelas avenidas, conferindo o murmúrio de cada corpo sendo queimado, acompanhado pela população em festa. Finalmente, chegou a uma fonte, no encontro de duas grandes avenidas e se misturou ao povo. Lá, foi recebido com festas, que se seguiram por toda aquela noite.


Concluído em 1882, a trabalho produzido por Siemiradzki é uma crítica por situação semelhante que passava todo o povo polonês. Bastante religiosos, estavam naquele momento sendo perseguidos por um governo que ia de desencontro ao gosto da maioria e oprimia grande parte da população, principalmente a classe religiosa. A obra foi adquirida do artista quando ainda morava em Roma, por von Botkinen e levada para Moscou. Quando von Botkinen foi transferido para Berlim, no início da Primeira Guerra Mundial, a tela foi com ele. Em 1921, Botkinen a vendeu para o colecionador dinamarquês C. C. Christensen. Uma primeira versão do trabalho foi, porém, doada pelo próprio Siemiradzki à Galeria Nacional de Cracóvia. Tochas de Nero tem todas as características clássicas e tão marcantes que sempre representaram as obras de Siemiradzki.


Henryk Siemiradzki nasceu em outubro de 1843, na aldeia de Bilhorod, perto da cidade de Kharkiv, na Polônia. Iniciou seus estudos formais na arte sob a orientação de Dmitry Bezperchei, discípulo de Karl Bryullov. Em 1864, ele foi para São Petersburgo e matriculou-se na Academia de Belas Artes. Após os anos promissores como estudante, Siemiradzki recebeu uma bolsa de estudos de seis anos para estudar no exterior. Ele então viajou de volta para a Europa Central, visitando Munique, Cracóvia e Dresden e, finalmente, chegando à península itálica. Siemiradzki hospedou em Veneza e Florença, e chegou a Roma em 1872.  Ali, ele montou um estúdio e começou a trabalhar em várias comissões. Siemiradzki rapidamente se tornou um dos moradores poloneses mais conhecidos da capital italiana. Como sua reputação cresceu, o estúdio se transformou em uma oficina, aceitando muitas comissões dos italianos, residentes compatriotas e visitantes estrangeiros. Siemiradzki continuou a manter laços com seu país de origem, bem como com a Rússia. Enquanto ele exibiu obras em Cracóvia e Varsóvia, ele foi eleito membro da Academia de Belas Artes de São Petersburgo (1873).
Um dos visitantes poloneses em Roma, mais frequentes no ateliê de Siemiradzki, foi o escritor Henryk Sienkiewicz. Os dois partilhavam um igual fascínio pela história do Império Romano e também possuíam sentimentos solidários iguais ao povo polonês. Curiosamente, assim que Siemiradzki começou a produzir Tochas de Nero, Sienkiewicz também escrevia um de seus romances mais famosos: Quo Vadis. O romance foi completamente publicado em 1896 (já que teve sua publicação parcelada desde 1895) e foi muito bem sucedido, vindo a se tornar um dos clássicos do cinema do século XX. Quo Vadis pode ser interpretada como a contribuição de Sienkiewicz contra a opressão da Rússia, assim como fez Siemiradzki com a obra Tochas de Nero. Desde 1795, quando a Polônia havia sido dividida, e a maior parte de seu território estava sob domínio russo, o país viveu sob forte opressão. Vários artistas, de diversos segmentos, foram fundamentais para que o país recuperasse sua sobrevivência e autonomia, uma vez que eram muito influentes fora de seu país. O movimento romântico polonês prosperou na noção de seu povo se reconciliar com a sua terra, cultura e religião. Ao descrever os sofrimentos dos mártires cristãos, Siemiradzki traduziu em uma cena carregada de conotações emocionais, o sentimento nacional de opressão sentida por seus camponeses. A eventual queda do Império Romano e do triunfo do cristianismo sobre a sua máquina política serviu como espelho para o povo polonês avaliar a sua situação contemporânea.

Siemiradzki morreu em Strzałkowo, Polônia, em 1902 e foi enterrado originalmente em Varsóvia. Mais tarde, os seus restos mortais foram transferidos para o Panteão Nacional em Skałka, em Cracóvia. Até hoje, é lembrado como um dos nomes mais importantes para a arte de seu país.

OUTROS TRABALHOS DO ARTISTA:

HENRYK SIEMIRADZKI - O julgamento de Paris - Óleo sobre tela - 99 x 227 - 1892

HENRYK SIEMIRADZKI - Dança entre espadas - Óleo sobre tela - 77 x 155 - 1887

HENRYK SIEMIRADZKI - A sesta patrícia - Óleo sobre tela - 79,4 x 127,6 - 1881

HENRYK SIEMIRADZKI - Phrine no Poseidon, em Eleusis - Óleo sobre tela - 1889

3 comentários:

  1. Espetacular este artista, impressionante mesmo! É um Gênio! Uma pena, José, que os artistas de hoje tenham abandonado os grandes temas da pintura...

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    1. É de uma riqueza técnica absurda, Ari.
      Obrigado pela vinda, meu amigo!

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  2. Que maravilha,artista fantástico!
    valeu meu amigo... abração!

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